A ERA DA ICONOFAGIA

O livro “A Era da Iconofagia” de Norval Baitello Junior, reúne ensaios de comunicação e cultura, onde o autor faz um estudo da sociedade contemporânea, que tem a comunicação de distância instaurada, uma super valorização da imagem e, consequentemente, uma nova tipologia das relações, percepções distintas do mundo e das pessoas. Faz ainda uma análise de como o consumo e a reprodução frenética de imagens afeta o Homem contemporâneo e quais as conseqüências na vida deste Homem. Dentre as conseqüências apontadas por Norval, está a diminuição da capacidade visual, que gera uma crise de visibilidade, e a perda da capacidade de estar presente, de sentir-se vivendo uma experiência aqui e agora. “A maior dificuldade do Homem contemporâneo é estar em seu tempo”.

A IMAGEM não se restringe apenas ao sentido de visão, ela pode ser configurada de distintas naturezas e em diferentes linguagens. Podem ser acústicas, olfativas, gustativas, táteis, proprioceptivas ou visuais. Muitas imagens são invisíveis ao sentido da visão, sendo percebidas pelos outros sentidos e, quando são visíveis, possuem algumas facetas e aspectos invisíveis aos nossos olhos. As imagens têm seu mundo próprio, independente do mundo da vida e das coisas, tentam nos seduzir a nos transferir para lá. Ela nos mobiliza para uma estratégia de ação, ou seja, ela nos faz fazer, a produzir mais imagens para nos defender, criando assim a debilidade dos nossos olhos diante de tantas imagens criadas. Passamos a ver superfícies ao invés de profundidades e desdobramentos.

Quanto mais imagens, menos visibilidade e quanto mais visão, menos propriocepção. Ora devoramos, ora somos devorados pelas imagens que criamos. Investimos nas imagens, somos bombardeados por elas e com isso passamos a não perceber mais nosso corpo, ou seja, perdemos a nossa propriocepção, a nossa corporeidade. Estamos vivendo um desequilíbrio ecológico dos sentidos, investimos no sentido de distância (visão e audição) e perdemos o sentido de proximidade (tato, olfato e paladar). Resgatar os sentidos de proximidade é resgatar o presente, é resgatar o corpo.

Corpo é presença. Corpo é comunicação. O corpo é uma história evolutiva de vínculos e nossos vínculos são fundamentados nos nossos sentidos. É a mídia primeira, o primeiro meio de comunicação do Homem, é o seu instrumento de vinculação com outros seres humanos. É através dele que produz diversas linguagens com as quais se aproxima, cultiva vínculo, mantém relações e parcerias com outros seres humanos. Essas linguagens (gestual, sonora, verbal, simbólica) evoluem para grandes complexos culturais, e o corpo passa a ser um desdobramento de linguagens simultâneas, responsável por contar sua história, “uma história que não é apenas a memória de um passado, mas também o espelho de um futuro, com seus sonhos, projetos, utopias, planos, desejos e aspirações”.

É desta mídia primeira, o corpo, que nasce a cultura como forma de suplantar a nossa realidade biofísica e social. É por medo da morte que a criamos, desenvolvendo mundos e formas paralelos para nos reinventar. A cultura passa a ser nossa segunda realidade, construída socialmente, partilhada com os outros, passa a ter status de verdade e é passada de geração em geração. É resultado da psique humana, feita a imagem e semelhança do Homem. Criamos a segunda realidade, entramos nela, ela nos afeta e nos recria.

As imagens são produtos da nossa psique, portanto, a nossa segunda realidade. Transformamos a natureza tridimensional em planos e superfícies imagéticas, procurando a síntese. Como vivemos uma inflação e exacerbação das imagens, tendemos a enfraquecê-la na sua essência, tornando-a mera reprodução da reprodução, vazia de signo. E como tudo nasce do nosso corpo e para ele volta, ele é afetado por esse esvaziamento de significado.

As imagens se alimentam do olhar e como o olhar é um gesto do corpo, o corpo se torna alimento do mundo das imagens e, vivendo numa sociedade inflacionada de imagens onde impera a reprodução imagética nula de significado, nosso corpo tende a se tornar um mero “observador da observação”, comprometendo a nossa propriocepção. Tendemos a transferir as vivencias do corpo para o mundo das imagens, o que significa sua transferência para um congelado eterno presente e, portanto, sem presente.

Para que nosso corpo possa cumprir sua função de mídia primária (voz, gesto, cheiro e o gosto), ele necessita da presença no ato de comunicar, precisa estar no mesmo espaço e tempo que nosso interlocutor; mas acontece que, com a velocidade com que são criadas as imagens, o nosso corpo tende a trabalhar na mesma sintonia, ou seja, estamos aqui, mas estamos com a mente “lá na frente”, pensando no próximo passo. Não vivemos o aqui e o agora. O corpo está presente, mas vazio, “zumbizado”. Vivemos um excesso de imagens exógenas, não tendo espaço e tempo para processar as imagens internamente. Alimentamos o mundo das imagens com nosso mundo interior, giramos entorno delas, somos escravos para elas e viramos objetos de devoração. Se não deciframos as imagens, não conseguimos nos apropriar delas e, consequentemente, elas nos devoram.

Na trajetória da civilização, o Homem, este animal inquieto, conquistou formas para garantir sua presença na sua ausência, ou seja, ele conseguiu demarcar seu território e conquistar outros espaços sem precisar estar presente, criando a mídia secundária e, com advento da eletricidade, a mídia terciária. O tempo e o espaço foram redefinidos, ficando cada vez mais reduzidos. Isso deveria aproximar e estreitar mais as relações, mas, paradoxalmente, estamos cada vez mais afastados nossos interlocutores.          Não temos tempo para criar laços. Nosso tempo está sendo consumido “em dar conta” de tantas imagens criadas, tantos “recados” enviados e recebidos. Estamos resumindo nossas vidas em currículos, carreiras, em números, pré-determinamos nossos comportamentos para “dar conta”. A lei é ampliar seu raio de atuação. É preciso “estar” em todos os lugares para “dar conta dos recados”. Com isso, o corpo perde suas dimensões e é reduzido, transformado em um alvo, um ponto a ser atingido pelo mercado. Passamos a ser clientes, consumidores, contribuintes e telespectadores. O corpo reduzido a um ponto é um corpo destituído de sua corporeidade. Não ocupa nenhum espaço, melhor, ocupa o espaço virtual do não-espaço. Nosso olhar é dirigido progressivamente para se tornar um receptor de superfícies planas e fica viciado em bidimensionalidades, desaparecendo para ele as profundidades.

A sociedade moderna cria meios para “facilitar” a vida do Homem moderno: autoatendimento, internet banking, educação à distância, etc. Tudo isso para diminuir o tempo gasto em atividades que poderiam “estressar” (palavra em voga) o Homem. Mas como tudo tem um “outro lado”, o que acontece é que estamos evitando o encontro, a troca de experiências e o aprofundar relações. As tecnologias criadas deveriam facilitar e aproximar as pessoas, mas estamos utilizando-as como barreiras para evitar demonstrar emoções e estabelecer vínculos. Seria medo de aprofundar relações e criar vínculos?

Essa sociedade moderna, com sua máquinas e ferramentas maravilhosas, afasta o Homem da sua essência, causando a senilização da juventude e juvenilização da velhice. Cada vez mais as crianças e jovens estão sendo obrigados a assumir responsabilidades, decisões e riscos individuais precocemente. E por outro lado, o velho é obrigado a ser sempre juvenil. Envelhecer nesta sociedade é estar “fora de moda”. Vivemos numa cultura que teme o envelhecimento e valoriza a imagem da vitalidade e beleza dos Jovens.

O corpo passa a ser o “inimigo”. O corpo não pode ser fraco, demonstrar fraqueza. Ele precisa responder as expectativas de uma sociedade apoiada em ser imagem, e esta sociedade tem suas ferramentas para driblar o tempo e restaurar a juventude. O outro do corpo deixa de ser a essência, a alma, e passa a ser a imagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como Arteterapeuta tenho que estar pronto para entender como se configura a nossa sociedade hoje, como as imagens criadas por este coletivo afeta a nossa propriocepção, as causas e efeitos na vida dos participantes desta sociedade.

O Homem contemporâneo vive rodeado de imagens e cada vez mais cria imagens para se defender das imagens criadas, criando um ciclo vicioso que o afasta do contato com seu corpo e da relação com o corpo do outro, fazendo predominar, para sua defesa, um ou mais sentidos em detrimento dos outros. Com isso, ele passa a não ter contato com sua corporeidade, transformando e ficando sua comunicação superficial. A profundidade lhe escapa. Acredito que resgatar os sentidos, integrando-os, é o caminho para entender a nossa corporeidade, é fazer um retorno ao nosso essencial.

Às vezes, tenho a sensação de “cair de mim”. São tantas os “recados recebidos”, são tantas as imagens que passam pelos meus olhos, que acabo confuso e me pego questionando, tentando entender minha presença, minha atuação neste mundo, o significado do meu trabalho. Qual é o meu espaço, a minha razão de ser? Sei que é bom ter essas questões em aberto. Elas me movem para entender o que me é essencial. Uma pergunta sempre me move… uma resposta pode me estacionar.

BIBLIOGRAFIA

BAITELLO JR., Norval. A Era da Iconofagia. Ensaios de Comunicação e Cultura – São Paulo : Hacker Editores, 2005.

SEVERINO, Antônio Joaquim. “Metodologia do trabalho científico”, 22. ed. rev. e ampl. de acordo com ABNT – São Paulo: Cortez, 2002.